terça-feira, 31 de julho de 2012

RELÓGIO



Possuo um relógio na minha sala. Relógio de parede que reina absoluto sobre o vão de entrada do meu pequeno apartamento. Sua posição de tão estratégica, me lembra o Rio Grande do Norte na segunda guerra mundial. Meu relógio vigia e observa todos que já entraram, saíram e ainda os que vão entrar e sair pela porta principal. Sabe de tudo que ocorre aqui dentro, mas guarda só pra si. As vezes ele me parece planejar algo diabólico contra alguém (Será eu?!) ou contra algum relógio digital, seu maior inimigo. A autenticidade desse meu relógio não para por ai. Ele só me mostra as horas quando e como ele bem entende. Por exemplo: Fim da tarde, o sol exibe seu crepúsculo apoteótico, chego da cidade, adentro a sala, olho para ele, que, obstinado e com os ponteiros bem eretos me exibe um retesado 11h05min. Parece querer despertar em mim uma overdose de curiosidade, esnobando a hora exata que, dentro desse cubículo onde vivo, só ele sabe. Então, o xingo como de corriqueiro, mas ele, imponente, parece não me dá ouvidos. Depois de semanas parado, rígido, marcando uma mesma hora que discorda completamente com o que mostra a geografia lá fora, o pulha resolve recomeçar a mover seus ponteiros, como se necessitasse hibernar e só depois, quando julgasse apto, retomasse o trabalho. “Vagabundo” - penso alto. Mas, vos escrevo para selar a paz que tive com meu amigo do tempo há poucos minutos. Depois de chegar da cidade e vê-lo estático marcando 3h15min com ponteiros semelhantes as pernas de uma acrobata olímpica, não o xinguei. Diferentemente dos outros dias, me brotou uma autorreflexão aguda. Analisemos juntos: Quem estipulou que seria naquele momento 18h? Pensando bem, meu querido relógio parece está certo, pois ele não subestima-se a trabalhar e a seguir um horário onde terceiros, que nem conhecemos, estipularam. É isso! Burro daquele que cumpre horários pré-estabelecidos, escravos de segundos, minutos e horas, que trabalham e descansam pontualmente quando um relógio qualquer ordena. Faça você mesmo seu horário. Trabalhe e descanse quando quiser! Liberte-se da ditadura temporal capitalista que lhe ordena e torna de você um ignóbil seguidor do culturalismo europeu e estadounidense. Obrigado meu relógio!


Espera um pouco... O que?! Esse safado está marcando 10h10min, seus ponteiros simulam lábios e ele está rindo da minha cara. Eu sou um asno mesmo. Só eu pra cair na lábia desse relógio cínico. Esqueçam o que eu disse e voltem aos seus horários habituais.


A propósito... Que horas são?          

Moisés Couto  

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O LARÁPIO


Recentemente tive a casa invadida por um ladrão. Depois dessa noite, não tive mais sono tranquilo, pois uma sensação de desproteção e desvantagem enquanto tentava dormir, me consumia. Deitado em busca do sono, sentia-me totalmente impotente. Refletia de mim para mim: “Agora, qualquer larápio pode entrar aqui e fazer o que bem quiser diante de meu corpo desacordado”. Sentia-me nu em um campo de batalha troiano. Até os índios de 1500 estavam protegidos, apesar de nus, das armas que cuspiam fogo dos europeus. Eu não. Uma casa invadida por um desconhecido significa que o único lugar seguro do mundo foi sabotado.

Na noite do ocorrido, eu o vi. Após meus gritos de ordem: “Saia!”, recheado de palavrões chulos que foram proferidos institivamente, o pulha foi saltando telhados de casas vizinhas, como um gato irresponsável de noites inquietas. Corri atrás do meliante, ruborizado e com sede de vingança, disposto a enxotá-lo. Mas não consegui. Prometo em textos futuros descrever como tudo se sucedeu.

Mas eis o que quero dizer: Noite passada estava eu em uma mesa de bar com os fiéis amigos da sexta feira à noite. De repente, ele surge, o reconheci a primeira vista, primeiro de costas, única imagem que tinha do furtador. Não tive resquícios de dúvida e pensei comigo: “É o larápio!”. Comentei com os amigos, e um mais exaltado o chamou para perto da mesa, ele se aproximou e eu pude ver seu rosto. Era um adolescente, raquítico de pequeníssimo porte. Braços e pernas finos. Orelhas grandes os olhos, sem vida, pareciam não ter foco em nada. Uma fina penugem no buço explicitava sua adolescência. Um queixo proeminente que dava a criaturinha o famigerado apelido, no diminutivo. Como ele realmente era: Um diminutivo de homem.

Na presença do ladrão, meu amigo divagava, nem me lembro do que se tratava. Pra mim e para o larápio, o que realmente acontecia ali era um encontro que se desenhou e que poderia ser trágico dias atrás.

Ele me reconheceu e eu o reconheci, e só. Não houve ali, frases, nem sequer uma palavra proferida entre nós. Eu apenas o olhava e ele com vergonha do comportamento hostil de dias atrás, com vergonha de ser quem é, olhava pra baixo ou para o horizonte. Reitero, seu olhar não tinha foco. Aquele é um ser à margem da sociedade. Sem pai, mãe, irmãos, sem alguém que tenha compaixão dele, que está putrefato pelo mundo das drogas. Mais do que tudo, um ser sem sociedade.

A situação implicou em um mundo de conversas mudas. Tiver vontade de fazer-lhe perguntas: “Como ele entrara na minha casa?” “O que sentiu?” Tive desejo de ameaça-lo: “Se entrar lá de novo...” Mas não. Não verbalizei absolutamente nada. Enxerguei naquele pobre menino uma consequência deplorável de uma sociedade que o exclui.

Até que ele foi embora, e assim como em um mundo selvagem, não trocamos verbos, mas apenas por uma vaga troca de olhares e a sensação da presença de um perto do outro, ele percebeu que não deveria mais pisar no meu lar, no meu porto seguro. 

Moisés Couto

segunda-feira, 9 de julho de 2012

FIM DA ABSTINÊNCIA


Um mês fora de casa, quatro semanas sem essa sensação, trinta dias de saudade. Depois de todo esse tempo de abstinência, ao te reencontrar, não resisti e te toquei. Não levei em consideração pudor, vergonha ou qualquer embaraço daquela cena. Apenas fui ao seu encontro e te toquei, beijei, acariciei, cheirei o cheirinho de menta que emana de suas entranhas. Lá onde eu vivo - distante de ti - tem outros tipos de você, mas não tenho liberdade de fazer em terceiros o que faço com você e nem se tivesse o consentimento de outros, não me arriscaria a te trocar. Eu quero só você. Lanço o convite: "Vamos dá uma volta por ai, quero que todos nos vejam juntos novamente." Você sem titubear aceita, numa passividade feminina extrema. Agora estou dentro de ti, sentindo a paz que me cerca. Estou sentado, na posição que mais gosto. Desconsidero qualquer impressão que tenham desse texto e repito sem pusilanimidade, estou em minha posição preferida e dentro de ti. Que ótima sensação! Um simples toque e você se treme por completo, parecem espasmos do ápice sexual. Em êxtase, levanto minha perna esquerda, pressiono a embreagem engato a primeira marcha e saímos vagarosamente. Que saudade eu estava de dirigir (guiar) meu carro.


Moisés Couto